[SEM_ÁUDIO] [SEM_ÁUDIO] Meu nome é Amara Moira, sou travesti, travesti mulher trans, são palavras muito são similares, sentidos similares, que a gente na comunidade trans a gente adota como sinônimas. Sou feminista e defendi meu Doutorado no começo de 2018 aqui na UNICAMP e estudando a obra do escritor irlandês James Joyce. As indeterminações do sentido, a forma como a sua obra, uma das suas obras mais importantes o Ulisses, lida e trabalha a questão da indeterminação dos sentidos. Joga com esses momentos que a obra brinca de fazer sentido, de não fazer sentido, de ficar ali no limiar sempre e nos convidando a pensar no que é o sentido e o que é a falta de sentido inclusive. Mas não é sobre isso que eu vinha conversar aqui hoje. Hoje eu queria conversar sobre gênero, sobre as novas perceções sobre gênero, a maneira como vamos criando novas sensibilidades na vida que a gente vive ao nosso redor, a gente olha para o lado, isso muda a maneira como a gente entende e lida com o mundo. Mas isso também muda a maneira como a gente lê e entende o nosso passado. E então a gente cobra cada vez mais representatividade. Então a presença de mulheres nos espaços mais variados da sociedade. Isso acaba também impactando na maneira como a gente vai reler a nossa própria história. Os debates feministas mais interessantes falam justamente sobre o quanto a gente se acostumou a contar a história dos grandes países, a história da humanidade sempre da perspectiva de homens, sempre encontrando homens como as figuras mais, que foram protagonistas, que foram de fato movimentaram a história. Mas mulheres sempre foram metade da população, pouco mais da metade, inclusive. Isso nos leva a uma pergunta, né? Onde estavam as mulheres e porque é que as mulheres não estão sendo contadas e consideradas ao se contar a história de país? Como é que se conta a história de país sem fazer referência direta a a grupo que foi metade da população constantemente? Então a gente começa a cobrar representatividade, presença de mulheres todos os espaços hoje na sociedade atual, na política, nos esportes, na mídia, vários espaços, na universidade, mas a gente acaba também começando a querer reinventar a maneira como a gente lida com a história colocando a mulher também numa posição de protagonista. Porque não é possível que grupo seja 50 por cento da população e esse grupo não seja protagonista da movimentação, da transformação da história. E a mesma coisa a gente pode pensar que é o debate que eu começo a fazer também, na crítica literária, na maneira como a gente lê os nossos clássicos, lê as nossas obras canônicas, que é o quanto desse debate atual, da forma como a gente hoje vai lidando com o gênero, vai lidando com questões como por exemplo, a sexualidade. A gente começa a debater cada vez mais essa questão da violência de gênero, tanto na violência sexual, da violência sexual dentro de casa, da violência sexual dentro de relacionamentos. E isso acaba impactando a maneira como a gente vai lidar com a representação do sexo, representação do consentimento, representação da própria violência sexual nas nossas grandes obras literárias. Porque é interessante pensar que 15 anos atrás quando eu entro na universidade, começo a me deparar, começo a ler de uma forma pouco mais critica essas obras literárias, ainda assim naquele momento, por não estar próximo de debate feminista eu via, lia essas obras a partir de uma perspectiva, de viés que não problematizava essas questões, mas a partir do momento que eu começo a problematizar essas questões no meu entorno social, na minha vida, a gente começa a ver esse debate ganhando força. A gente vê cada vez mais mulheres conseguindo pontuar que aquilo que tem sido chamado sexo, talvez seja envergar de uma violência, a gente começa a conseguir criar essa sensibilidade para perceber isso com violência, uma parte desse sexo que nos tem sido exposto como violência, a gente começa a olhar essas obras também e se perguntar o que é que elas nos estão dizendo. E aí novas interpretações vão surgindo a partir de então. Eu fico pensado por exemplo, numa obra como o Cortiço. Tem momento ali que tem o Miranda e a esposa e está sendo dito que a esposa estava dormindo e o Miranda se chega até à porta do quarto, eles estavam brigados, estavam dormindo quartos separados, mas aí no momento assim que ele fica lá com desejo e ele sente desejo pela esposa, ele vai ali na porta do quarto, vê ela dormindo. Vê uma parte do corpo dela descoberta pelo lençol, aquilo acende o desejo e ele vai para cima dela e o narrador coloca que ela estava fingindo que estava dormindo. Interessante esse fingindo que estava dormindo, porque é como se fosse o narrador estivesse dizendo, aqui não está nenhum estupro, aqui não está acontecendo nada de mais, ela estava fingindo que estava dormindo. Eles estão nos avisando então, que ela estava de alguma forma colaborando e participando e dando o seu consentimento, o seu assentimento para que a cena desenrolasse. Mas eu fico me perguntando sempre quem está dizendo que ela estava fingindo que estava dormindo? Eu fico me perguntando também se esse fingir é da perspectiva dela ou da perspectiva desse marido que surge ali e vê ela dormindo e ele queria acreditar que ela estava fingindo que estava dormindo, ou talvez o narrador estava nos dizendo que estava fingindo que estava dormindo, mas esse marido ele sabe que ela está fingindo que está dormindo ou ele acredita que ela está dormindo? Percebe que são questões que começam a modificar a maneira como a gente lida com esse debate com a maneira de como a gente lida com essas obras e com o que está sendo representado ali, porque se a gente vai comprar a ideia do narrador de que ela está fingindo, ainda que ela esteja fingindo, a gente precisa pensar se esse marido sabe que ela está fingindo? Se esse marido acredita que ela está fingindo? Se ela está de fato fingindo. Então são questões que vão mostrando o debate sobre a sexualidade de uma outra perspectiva. Uma outra obra que também super me interessa pensar quando eu começo a questionar a respeito de sensualidade é o Macunaíma, que é esse personagem, ele é folclórico e ao mesmo tempo que sintetiza pouco o espírito nacional, preguiçoso, a coisa do jeitinho, então a fala também empostada quando ele quer se mostrar, quer se sentir melhor, né? Ser de uma forma, impressionar. Mas tem outro aspecto dessa obra que às vezes passa partido e às vezes a gente nem presta tanta atenção, eu li muitas vezes essa obra vários momentos da vida, mas é interessante ler a partir desse momento que eu ganho, que eu construo uma perspectiva feminista, que eu me aproximo de debate feminista, ler o Macunaíma a partir do momento que eu me aproximo do debate feminista faz com que essa obra me diga coisas muito diferentes do que quando ela me dizia 15 anos atrás quando eu comecei a ler essa obra pelas primeiras vezes. E aí dos pontos que isso se torna mais evidente por exemplo, é quando vai falar sobre o apaixonamento dele pela Ci, a Mãe do Mato, que é uma personagem também muito importante dentro da obra, né? E coloca ali o dia que eles se conheceram, ele estava andando com os irmãos dele e aí ele encontra a Ci, a Mãe do Mato dormindo, se apaixona, ele quer brincar com a Ci, né? Brincar é a palavra que o texto usa. Mas ela está dormindo, ele vai para cima dela mesmo assim, ela acorda mais forte do que ele, ela coloca ele no seu lugar, ele não consegue forçá-la a brincar com ele porque ela é mais forte e isso quer dizer também que ela não queria. Isso é sempre importante que a gente conclua. Está escrito no texto, ela não queria e como ela não queria e era mais forte ela impôs a ele o não. E aí ele chama os seus irmãos para que segurem ela. Os irmãos seguram, deles dá uma porretada na cabeça dela, ela cai desacordada no chão e desacordada o herói da nossa gente, que é assim que ele é chamado também, vai e brinca com ela e o ato, a floresta fica festa saudando o novo imperador do Mato Virgem. E a partir de então, eles os dois começam a se tornar casal e começam a ter uma vida ali super amorosa e super feliz, né? E que é muito interessante o que essa passagem está nos dizendo, essa passagem está nos dizendo que o não da mulher é apenas porque você não conseguiu submetê-la. O não da mulher significa que você ainda não foi suficientemente enfático ou incisivo para obtê-lo, para obter o seu sim, o seu consentimento. O que significa esse não? Olha a partir do momento que ele consegue superar esse não, isso implicou no caso dela estar desacordada no chão, a partir desse momento eles se tornam casal e ela se torna a sua esposa amorosa e ele também e inclusive a líbido dela passa a ser maior do que a dele. Ela quer brincar muito mais vezes do que ele e ele às vezes não dá conta do recado. Muito interessante então, porque isso são mensagens sobre como lidar com mulheres, como lidar com o não das mulheres, como interpretar o não das mulheres, não é? E aí joga a pergunta não é? Ela estava desacordada, ela tinha sido violentada, estava sendo segura pelos irmãos. Isso é estupro. O fato deles terem depois começado uma relação amorosa, torna essa relação estupro? Eu vejo muitos críticos literários que às vezes olham para essa cena e dizem que essa cena, ela representa uma luta amorosa, e é interessante pensar o que significa uma luta amorosa, quando a gente vai olhar para o nosso passado literário. A gente gosta de chamar o Macunaíma de preguiçoso, gosta de falar que ele cai nesse espírito malandro, que a gente identifica como brasileiro, que ele é uma junção de vários aspectos da brasilidade, da cultura brasileira, mas agora talvez seja importante a gente começar a perceber também que desses aspectos da cultura brasileira que ele encarna é justamente o aspecto machista, esse aspecto que naturaliza a violação sexual de mulheres, que não percebe talvez inclusive que ele esteja violentando mulheres. Porque essa é uma das coisas mais tristes, mais sofridas do machismo, desse conjunto de discursos, de narrativas machistas, é justamente o que autoriza esse homem a sujeitar uma mulher à força para que ela faça sexo quando ele quer sem entender que isso é uma violência contra ela. O que está jogo, ali o Macunaíma não está criando isso mas ele está reproduzindo e escancarando isso de uma maneira muito peculiar e particular, está dizendo de forma muito explícita o que significa, como lidar com não de uma mulher. Inclusive até há muito pouco tempo uma das formas de reparação do dano causado a uma família quando tinha uma filha virgem estrupada era justamente casá-la com o violador. Olha que loucura isso, não é? Isso hoje para nós é impensável, não é? Forçar uma figura, uma mulher a ter que se casar e a ter que conviver intimamente com a figura que a violou. Isso é inaceitável para a nossa sensibilidade hoje, mas até há algumas décadas atrás essa era uma prática rotineira. E diz muito do que significa esse não, diz muito sobre para quem ela pode consentir e porque é que ela não pode consentir, não é? O estrupo até há 100 anos atrás, nos grandes dicionários da lingua portuguesa não era definido como uma violência contra mulher, era violência contra a propriedade de homem. Era uma mulher que era virgem e aí violá-la seria uma violação, seria uma violência contra o patrimonio de uma família, então isso tornaria aquela figura, aquela mulher, uma mulher que não se presta para o casamento, que não pode ser casada com outra figura. Ou então o estrupo era entendido como uma violência contra uma mulher casada, ou é uma mulher que tem pai, ou é uma mulher que tem marido. Não era uma violência contra ela, era uma violência contra o homem que a possui. O homem de quem essa mulher é propriedade. E a partir do momento que a gente começa a conceber o estudo de outra perspectiva, a partir do momento que a gente começa a conceber a construção desse desejo, desse protagonismo dessa mulher de ela ter voz e ter vez ao pensar a sexualidade, isso afeta a maneira de como a gente vai ler as obras e a maneira como essas obras estão retratando esse encontro sexual, inclusive quando acham que estão retratando encontro sexual que é feliz, que deu certo que tem final feliz e tudo mais. São questões que muito me interessam. Perceber o quanto existe por trás, as narrativas que estão por trás e que permitem que alguma coisa aconteça. O estrupo não é simplesmente uma questão de força física, de quem tem mais força física impões a pessoa mais fraca à sua vontade. Não é uma questão só disso. Como a gente está, existe monte de narrativas prévias dizendo que homens podem-se comportar de determinadas maneiras se mulheres estiverem-se comportando de determinada maneira. Então se ela estiver de roupa curta, está bom, não é? Se ela estiver andando num lugar inapropriado, se ela tiver bebido mais do que deveria, se ela estiver dormindo, se você conseguiu, se você conseguiu significa que ela não conseguiu se defender devidamente. Isso tudo são narrativas que vão criando essa possibilidade. Tem algumas pensadoras feministas que vão falar por exemplo, que a nossa cultura, ela favorece, ela naturaliza e propicia mesmo que situações de violência sexual contra mulheres ao erotizar a fragilidade da mulher. Então transforma a mulher frágil numa mulher bonita, numa mulher desejável. A mulher desejável é essa mulher completamente indefesa, que precisa da figura de homem para defendê-la. Quando a gente vai ver representações sexuais, muitas vezes a gente vê justamente uma figura ali completamente fragilizada, à mercê dessa outra figura que é muito poderosa, que faz o sexo de uma forma violenta, não é? E isso tudo vai nos dizendo que essa mulher numa posição de fragilidade, de vulnerabilidade, essa situação dela, a existência dela está sendo erotizada. Está sendo entendido aquilo e codificado aquilo termos de isso é excitante. A mulher que se impõe não, a mulher que consegue fazer frente, não. Mas a mulher que está numa situação de vulnerabilidade essa mulher, que transmite medo é que revela que está sentindo medo, essa mulher é erotizada. E a gente chega numa outra obra que é muito interessante também, que é o Capitães da Areia. Uma obra do Jorge Amado. Jorge Amado escreveu inúmeras das suas obras e retratou cenas de estrupo, né? Parece que ele tinha uma especial predileção por essas cenas e por ir na minúcia nessas cenas. Então essa do Capitães de Areia são 4 páginas escrevendo o suplício, a tortura, a violência que essa mulher está passando. E é interessante que também não é qualquer mulher não é? A gente vai ver que tem algumas mulheres que são especialmente colocadas nessa posição de corpos estupráveis. Aqui a gente vai ver, no caso do Capitães de Areia, uma menina negra, adolescente, acabou de fazer 15 anos e está passando por uma parte da praia que é meio deserta e isso fez com que o protagonista da obra do Capitães da Areia se sentisse no direito de forçá-la a ter relações com ele. E a menina está pânico, a menina é virgem, a menina nunca teve relações sexuais, a menina está se guardando para uma figura que ela julgue que mereça, com quem ela possa viver, construir uma família, construir uma relação, mas nada disso importa. Ele chega, a forma como a narrativa vai sendo construída é muito interessante também, mostra Pedro Bala observando aquele corpo, dizendo que aquele corpo, a pessoa negra ela não anda, ela rebola e vendo o rebolado da negrinha, está sendo colocado exatamente nesses termos, ele esquecia que o pai tinha sido morto na greve, defendendo os interesses dos trabalhadores. Olha como é que está sendo dito isso, né? É como se o narrador assumisse essa perspectiva desse personagem, protagonista que está ali a beira de, quase cometendo uma violência sexual e simpatizasse, empatizasse com a posição dele. Não coloca o terror que essa menina está sofrendo, ele vai privilegiar esse, olha a informação que nos está sendo passada: ao ver as nádegas reboleantes da negrinha, ele esquecia que o pai tinha sido morto defendendo os interesses dos trabalhadores greve. Isso é muito surreal, a forma como isso está sendo naturalizado, explicado ou defendido até. Aquele corpo ele podia ser violentado por conta do bem que ele estava causando aquele protagonista. E aí é interessante que vão ser quatro páginas narrando o suplício dessa figura mas nos momentos vai ter item a mais de perversidade nessa descrição que é o momento que o narrador se permite entrar dentro da personagem, da cabeça da personagem. E aí nos mostra essa menina que está pânico diante da possibilidade de perder sua virgindade para anônimo, uma figura que ela não conhece, uma figura com quem ela não deseja fazer sexo e essa figura, nesse momento que narra a sua subjetividade, a maneira como está lidando com aquilo, a gente vai ver narrador que apresenta essa figura dúvida se ela quer ou não. Ou seja vai mostrar essa menina perdida, tendo que trazer a sua racionalidade para o primeiro plano, para que ela não se permita se deixar levar pelo seu próprio desejo porque pelo seu próprio desejo talvez ela se abandonasse ali para viver uma experiência sexual com Com aquele menino. Então é interessante, né? Porque os Capitães da Areia são meninos ali situação de rua, situação de extrema vulnerabilidade e o Jorge Amado assume uma posição simpática, empática à desses meninos. Então coloca eles dentro de outra posição e se permite vê-los por outro olhar, que não o olhar marginalizador, que reproduz exclusão sobre eles, que os discrimina, que os vê como ameaça. Ele se coloca de uma outra perspectiva. Mas essa posição empática para com esse meninos, ela não é também colocada pra pensar a situação dessa menina. Quando são [INCOMPREENSÍVEL] inúmeros momentos que existem estupros de meninas negras cometidos pelos Capitães da Areia. Mas o único que está sendo narrado minúncia vai mostrar justamente essa figura dúvida se ela queria ou não, o que é mais perverso. Porque mostra essa figura sendo violentada, mostra ela pânico, chorando, mas o narrador entra dentro da cabeça dela e revela que, na verdade, ela está mais ou menos querendo. Ela está querendo, mas não está querendo. Isso tudo acaba sendo uma projeção, uma espécie de projeção dessa imaginação machista que criam na nossa sociedade. Isso tudo mostra o quanto esse discurso era criado, essa narrativa era criada. E ela é mais do que simplesmente força física. Talvez, esse narrador entrando na cabeça da personagem seja uma projeção do que esse protagonista, o Pedro Bala, está pensando sobre essa menina. Talvez ele próprio esteja olhando para ela, vendo ela pânico, mas imaginando que, na verdade, no fundinho ela está gostando, ela está querendo de fato. Isso também é uma forma de dizer que o não da mulher, na verdade, significa sim, desde que você saiba forçá-la, convencê-la a chegar até o sim. E a dor da mulher significa prazer. Uma inversão completa de valores. Uma inversão completa de narrativas. Tudo o que a mulher diz pode significar o contrário do que ela está dizendo. E quando ela está dizendo aquilo que convém, que a gente quer que ela esteja dizendo de fato a gente aceita a palavra dela como válida. Ou seja, a gente sempre pode desconfiar do que a mulher está dizendo. A gente sempre pode também, e esse é dos pontos mais interessantes, alegar ignorância. Então esse menino que está violentando essa menina, ele é criado para acreditar que se algum momento der ruim, se algum momento ela conseguir inverter o jogo, chegar uma figura e separá-los, e colocá-lo diante de uma acusação, essa figura vai poder alegar que ela não tinha percebido que de fato a outra figura não queria. O que é mais cruel de tudo. Ou seja, a ignorância masculina sempre pode ser alegada para tentar explicar porque que ele não parou quando ela disse não. Porque ele não tinha percebido que aquele não era não de verdade. Isso nos leva a outro texto, que também é central para pensar esse debate na literatura, né? A forma como a literatura trata com sentimento, e a forma como muitas vezes esse texto da literatura acaba se tornando base para até criar jurisprudência e para criar uma certa compreensão legal, jurídica do que diferenciaria uma violência sexual de uma relação sexual acordada e consentida, que é uma passagem famosa de Os Lusíadas. Tem episódio Os Lusíadas do Camões, a gente já recuou vários séculos, mas é interessante que a gente recua vários séculos para pegar uma passagem que é hoje utilizada por grandes comentadores do Código Penal para explicar a diferença entre o estupro e não envergonhado dito pela mulher. Uma mulher que diz não, significando sim. A gente vai até Os Lusíadas para encontrar. Então a literatura sendo usada para revelar, mostrar, ajudar que a gente visualize o que seria esse não envergonhado. E a gente vê então uma cena que Vênus para recompensar os navegantes, os guerreiros portugueses pelos seus grandes feitos, de terem chegar até as Índias, na armada do Vasco da Gama, Vênus para coroar essa [INCOMPREENSÍVEL], esse grande feito, faz surgir uma ilha no meio do oceano Índico, leva para essa ilha as ninfas mais belas que habitam os oceanos, então as mulheres mais belas estão colocadas dentro dessa ilha. Essas ninfas são flechadas pelo deus Cupido, para que se apaixonem pelos portugueses, só de olhá-los. Então, préviamente, elas estão sendo apaixonadas, elas estão sendo enfeitiçadas para se apaixonarem por esses portugueses, sem nem precisar vê-los. E elas são instruídas pela própria Vênus a demonstrarem... A demonstrarem, como é que fala? Elas são instruídas pela própria Vênus para demonstrarem pudor. Elas são instruídas pela própria Vênus para demonstrarem pudor, porque os portugueses preferem mulheres pudicas, então de repente chegam esses navegantes portugueses nessa ilha. Encontram monte de mulheres nuas. Eles não sabem que elas estavam nuas. Não sabem nem que existiam mulheres nessa ilha. Eles simplesmente as encontram. Eles estão procurando comida. Eles estão procurando comida com cães de caça, e quando eles encontram essas mulheres eles ficam alucinados, e soltam os cães de caça cima dessas mulheres. E aí eles conseguem pegar, aprisionar e ter as suas relações com essas mulheres. Isso tudo está sendo dito para nós que é uma relação consentida, porque no antes de chegarem os portugueses, nos foi avisado que a própria Vênus se encarregou de apaixonar essas mulheres. Mas é interessante que ela também disse pra essas mulheres, o que é muito conveniente, então na narrativa escrita por homem dizendo sobre como os homens se comportam na presença de mulheres, e como é que as mulheres foram instruídas a se comportarem. Essa narrativa está nos dizendo que Vênus instruiu essas mulheres a revelarem, mostrarem pudor quando vissem os portugueses. Ou seja, não se atirassem de pronto na direção deles e mostrassem o desejo que elas também possuíam. Isso nos diz, isso é uma narrativa que nos mostra como o não de mulheres, como a vergonha, o pudor de mulheres deve ser entendido. É quase como sendo, essas mulheres estão sim apaixonadas por nós. Essas mulheres querem transar com homens. Mas elas precisam ser vencidas. A sua resistência precisa ser vencida. E nesse caso vai ser vencida com cães de caça. Esses homens não sabem que essas mulheres estavam apaixonadas por eles. Esses homens precisavam, inclusive, pra sentir desejo por elas, acreditar que elas não estavam apaixonadas por eles. Acreditar que elas tinham sido pegas de surpresa e estavam sendo aprisionadas e possuídas a força por eles. Percebe como é interessante? Quando a gente olha pra esse dado que traz a narrativa que Vênus se incumbiu de apaixonar essas mulheres, mas da perspectiva deles, eles continuam sem saber que elas estão apaixonadas. Isso tudo sendo usado por comentadores do Código Penal para diferenciar o que seria o estupro de fato, uma violência contra a mulher, do não envergonhado, do consentimento envergonhado. Numa mulher que por conta do pudor, e por conta do machismo não pode simplesmente falar sim, a mulher que fala sim é estigmatizada. Então o que ela tem que fazer? Ela tem que falar não que signifique sim. E com isso a gente vai criando uma sociedade que naturaliza a prática da violência sexual, e que convenientemente escolhe se vai entender aquele não que a mulher está dizendo, como não que significa não, ou não que significa sim. [SEM_ÁUDIO]